Friday, June 8, 2012

correcção

Não tenho sequer tempo para levantar os olhos da estrada de papel. Os corpos das letras espalham-se em sangue negro alinhado nas veias vulgares do asfalto. No meio olhar de luz intensa, o choque brutal conta a minha testa imensa de ideias. O vidro frontal estilhaça-se nos cortes do ferro que entra sem resistência da água mole da minha carne.
Sonho o impacto e levanto-me nos gestos do sono. Estou imóvel no chão que sinto a rir por baixo de mim. A rua de gritos das velhas lamenta-se infinita pronta a engolir-me. Era tão jovem. Que desgraça, nosso senhor. Ninguém merece acabar assim. Adivinho o cerco que se abate sobre mim. Adivinho o impacto quando abro o frigorífico em cima, retiro a manteiga e a esfrego morta num pedaço duro de pão
Em baixo, metros à frente uma pena de pombo erecta e heróica no meio exacto da morte sem identidade. À distância da garra um gatinho aos pulos de sangue final. E eu igual a todos. Sepultada fora da terra, no olhar disco cheio de prata dos gritos das velhas.
Em cima, hoje olho duas vezes pela janela. Desço os três andares em nódoa de café com leite e pão duro atravessado na garganta. Os miúdos novos colados na esquina gulosos da idade. Olho para eles sem sorrir de volta.
Na rua corrijo o meu primeiro passo na onda suja da calçada. O destino passa em rente de pássaro ladrão pela minha cabeça. Adio o adeus para te encontrar na volta da casa à minha espera sem saberes porquê ou até quando.

(by Fernando Ribeiro)

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