"O acidente de Michael Schumacher fez-me lembrar o dia em que deixei de ver Fórmula 1: um de maio de mil novecentos e noventa e quatro, o dia do acidente mortal de Ayrton Senna, um dos meus heróis, o dia da vitória abjecta de Schumacher, um dos meus vilões. Foi um daqueles episódios sísmicos. O café do bairro ficou cheio de gente comovida com a morte do brasileiro e furiosa com a aparente amoralidade do alemão, que celebrou a vitória depois da morte do colega de profissão. Alguns dos meus amigos, os verdadeiros aficionados, falavam como se tivesse morrido alguém da família. E não andavam longe da verdade. Os pilotos de F1 eram uma presença constante nos almoços de domingo, eram uma espécie de tios afastados que partilhavam a grande refeição da semana. O meu tio favorito era Nelson Piquet, um brasileiro com pinta de Roberto Caros que voava não num calhambeque mas num Lótus amarelo com anúncios da Camel. Piquet, Senna e os demais pilotos eram heróis partilhados por toda a gente, em Portugal e na Europa. Aliás, na voz de António Nicolau (faleceu há dias), o comentador dos Grandes Prémios na RTP, os nomes dos pilotos de F1 compõem uma faixa inteira da banda sonora dos anos 80 e 90: Prost, Mansell, Patrese, J. J. Lehto, Gerhard Berger, Larini, Nannini, Alboreto, Alesi, Senna, Piquet.
É preciso compreender a época. Nós víamos a F1 da mesma forma que víamos o Eurofestival. Em maio de 1994, a nossa cabeça estava formatada por dois canais de televisão (a SIC nem um ano tinha). Não tínhamos net nem TV por cabo. Toda a gente via os mesmos filmes, as mesmas séries, as mesmas novelas, os mesmos programas, as mesmas corridas de F1. Tínhamos pouca liberdade de escolha? Talvez. Mas em compensação tínhamos assuntos de conversa, esse antepassado remoto do Facebook. Nos últimos tempos não têm sentido um desconforto crescente nas conversas com os vossos amigos? Eu sinto. A arte da conversa está cada vez mais difícil, porque não temos pontos de referência comuns, andamos a ver, ouvir e a ler coisas diferentes. Já não falamos com amigos sobre um programa, recomendamos aos amigos o tal programa que eles não conhecem, e eles recomendam-nos séries que nós desconhecemos. Já não conversamos, só recomendamos.
E esta fragmentação cultural faz-me lembrar a outra morte sísmica de 1994: o suicídio de Kurt Cobain. Se Senna provocou lágrimas em maio, Cobain originou dilúvios em abril. A minha turma inteira chorou a morte do vocalista da banda que toda a gente ouvia. Hoje em dia, esse impacto emocional seria impossível. A fragmentação cultural em que estamos mergulhados não permite aquela concentração de emoções num único objecto. No tempo do vinil, da cassete e do CD, toda a gente ouvia mais ou menos as mesmas coisas. Com a internet, a fragmentação atingiu um absurdo quase cómico. Nos youtubes desta vida, podemos encontrar toda a música do universo. Liberdade de escolha? Sim. Mas falta o espaço comum da partilha, da conversa, da discussão, da pancadaria emocional em redor do mesmo objecto. Em 1994, o suicídio de Cobain e a morte de Senna geraram semanas de conversas. Em 2014, a (hipotética) morte de Schumacher só dará para uma manhã de posts no Facebook. à tarde já será preciso outra coisa. Andamos a fazer qualquer coisa de errado."
(Henrique Raposo in "Expresso", 04-Jan-2014)
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